Centro de Referência em Agroecologia - São Bento

Parte II - OS FILHOS DA LUTA

(Centro de Referência em Agroecologia - São Bento - 21/04/18)

Chegamos no Centro de Referência em Agroecologia, em São Bento, onde os jovens - militantes do MST e Levante Popular da Juventude entre 18 e 25 anos - nos esperavam enquanto tomavam café ou batiam papo sentados na grama.
Nos cumprimentamos carinhosamente, olhares curiosos de ambos os lados.

Tomamos café também e visitamos o espaço. As paredes abrigavam imagens pintadas ou coladas de Che Guevara, Fidel Castro, Olga Benário e Luiz Beltrame, figura importante entre os militantes, reconhecido por suas poesias e por ter ido em todas as marchas do MST até seus 105 anos.
Em outra parede as palavras: “ocupar - resistir - produzir”.

Varremos e organizamos a sala da oficina até sermos convocados para o início da Mística.
A Mística é uma prática característica do Movimento, na qual os militantes se utilizam de diversas linguagens artísticas pra divulgar suas idéias, pensamentos, olhares sobre os fatos da atualidade, seus princípios. Para nós, naqueles dois dias de encontro, a Mística apresentou-se como um sensível ritual antes do início dos trabalhos.

Nos colocamos em roda. Silêncio. Quatro dos jovens apresentaram uma performance simples e forte sobre alguns de seus representantes que haviam sido presos ou mortos. No fim da cena puxaram cantos e gritos de ordem que repetíamos, arrepiados dos pés à cabeça. As lágrimas brotavam aos saltos dos meus olhos e tive que me segurar para não soluçar diante de tamanha força em forma de poesia.

Finalizamos o ritual com rápidos depoimentos: nós, Cromossomos, embasbacados. Seu Ivan dizendo que a luta deve ser feita com arte e alegria, em festa. Pelo afeto, não pela violência. Concordamos.

Depois desse turbilhão inicial de sensações (sem imaginar que isso era apenas o começo) fomos, cada qual a sua maneira, pros últimos preparativos antes do início da oficina. Fiz força pra me centrar novamente, já que eu seria a primeira a conduzir aquele processo. Senti um frio na barriga. Sou velha de guerra em sala de aula, mas havia algo naquele espaço que me trazia a sensação de estar em um território completamente desconhecido.

Por isso, quando aqueles jovens se colocaram diante de mim, senti a necessidade de me conectar com eles da maneira mais afetiva e familiar que me pudesse parecer naquele momento. Propus que fizéssemos uma roda com os braços entrelaçados pelas cinturas: “assim que nós Cromossomos fazemos sempre antes de entrar em cena: braços nas cinturas, olhos nos olhos e a canção “embaixo, embaixo, embaixo, embaixo, ô ô ô ô! Em cima, em cima, em cima, em cima, ô ô ô ô!” Rebolávamos enquanto cantávamos e a atmosfera se fez mais branda.

O primeiro bloco da oficina foi ministrado por mim e pela Aline e já nesse momento percebi o tamanho da nossa ingenuidade ao pensar as atividades: tínhamos o propósito de estimular a escuta e a conexão do grupo e de estimular o levantamento de temas que poderiam ser abordados na criação de cenas dos próximos blocos. 
Nossa surpresa foi ver que aqueles e aquelas jovens já tem, sem o menor esforço, a percepção, a escuta e a implicação necessárias para o trabalho em coletivo. Está em seus corpos, é tão natural! Da mesma forma, surgiam com toda a fluidez nos jogos e cenas os assuntos que envolvem a realidade da luta pela terra.

Não posso deixar de comentar sobre um momento bonito: era um jogo no qual deveriam passar uma bola entre eles e, se ela caísse no chão, todos deveriam deitar representando uma morte dramática e logo ressuscitar representando um personagem sugerido por nós. Brincamos com vários personagens. O penúltimo: latifundiários. O último: militantes do MST. Nesse último momento passavam a bola. Quando ela caiu eles insinuaram o movimento de ir ao chão, mas num impulso, antes de cair, se olharam e levantaram. “Não! A gente não cai, a gente luta!” E a Aline completou: “militante não morre, vira semente!”. A celebração foi geral.

Aqueles jovens militantes têm, na pele, nas entranhas, no corpo, nas expressões, no olhar a força, a apropriação e a clareza dos propósitos e das ações do Movimento. Cresceram naquele contexto, respiram aquilo todos os dias, se formaram naquele ambiente. Os filhos da luta.

A oficina não foi em vão, colocou luz naquela qualidade que já apresentavam e eles, mais conscientes, potencializaram a conexão. Mas não era preciso fazer muito.

O mesmo ocorreu na parte da tarde. Ali, Arthur e Paulinho introduziram a linguagem do mimodrama que propõe um teatro feito só com o corpo e nada mais. Rapidamente eles compreenderam a linguagem e, em instantes, aqueles corpos pulsantes já expressavam a narrativa do Movimento com toda a potência, profundidade e bom humor.

Entre nós, Cromossomos, olhares impressionados e orgulhosos.

Entre um período e outro da oficina almoçamos juntos e cantamos. O canto é outra expressão muito presente entre os jovens do Movimento.

Depois da oficina, o Saulo, um dos jovens do Levante Popular da Juventude nos deu uma formação em Agitprop (agitação e propaganda). Pra quem não sabe, a prática da Agitprop surgiu durante a Revolução Russa. Ela sugeria a utilização da arte pra disseminar as idéias do Movimento Revolucionário. A agitação propõe a divulgação com poucas ideias pra muitas pessoas e a propaganda, muitas ideias pra menos pessoas. Fizemos vivências práticas nas quais tínhamos que criar paródias, vídeos e rodas de conversa a partir de temas sugeridos pelo Saulo. Foi incrível.

Nesse momento estávamos de queixo caído. Comentávamos em nossas “conversas de corredor” o quão impressionados estávamos. Não porque em algum momento tivéssemos duvidado deles, mas porque, de fato, desconhecíamos a potencialidade dessa galera.

Mas ainda tinha o sarau! Uma noite de música, cenas e poesias feitas por eles e por nós. Profundas, críticas, belas.

Finalizamos o dia exaustos. Mas com uma força diferente e a compreensão mais profunda do que significa fazer arte “a serviço de”. Quando fomos deitar éramos outros artistas, diferentes daqueles que despertaram naquele mesmo dia às 7h da manhã. Ainda assim tínhamos que dormir logo: o despertador tocaria de novo, dessa vez às seis!

Por Tejas Tejas, palhaça Carmen Serafina

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