Assentamento Antônio Conselheiro e Assentamento Padre Josino

PALHASSENTAR A TERRA E O CHACOALHAR DE UMA PALHAÇA EM TRÂNSITO

Estamos na metade da viagem e eu já estou completamente arrebatada.
São espécies de terremotos internos o que sinto a cada viagem que faço com os Cromossomos. Nunca sei ao certo o que esperar das nossas caravanas e, mesmo quando penso “estou curiosa, mas parece que dessa vez vai ser mais tranquilo” - o que me passou pela cabeça antes desse projeto -, quando vivo esses encontros sou lançada prum espaço/tempo desconhecido com força e intensidade tamanhas que muitas vezes tiram meu ar.
A gente entra em contato com realidades tão intensas e diferentes das nossas - as quais, de verdade, só temos dimensão quando vemos de perto - que é como se diante de cada experiência o mundo crescesse muito rápido dentro de mim e, com a mesma velocidade, eu tivesse que abrir um espaço no corpo pra acomodar tudo isso.
Não significa que é ruim. Mas bagunça tudo que antes parecia estar organizado.

Agora mesmo sinto esse movimento acontecendo por aqui. Uff!

Por isso, por toda essa intensidade e pelo desejo de compartilhar cada pedacinho - não só porque minha capacidade de síntese é ínfima! -, o relato do período que passamos no Mirante do Paranapanema, do qual fiquei responsável por fazer, vai ser dividido em três partes: uma para cada dia.

Parte I: SE O CAMPO NÃO PLANTA A CIDADE NÃO JANTA ou O Agro NÃO é pop!

(Assentamento Antônio Conselheiro e Assentamento Padre Josino - 20/04/18)

Saímos da casa do Cido e percorremos uma estrada comprida: muita cana de um lado, muita cana do outro, por quilômetros… é a plantação de uma usina que tem contrato com a Coca Cola, pra fazer açúcar líquido.
Quando a usina se instalou, prometeram empregos. A questão é que, nesse caso, as máquinas trabalham com mais eficiência que os homens,  mesmo porque, segundo pesquisas relatadas pela Rejane - mulher maravilhosa que acabamos de conhecer -, um trabalhador de cana aguenta trabalhar com “força e eficiência” por menos de dez anos, menos do que a previsão que faziam do trabalho de um escravo. Depois disso seu corpo fica acabado e ele já não serve pro patrão.

Chegamos na casa do Serginho e da Sol, no Assentamento Antônio Conselheiro. Ela é fresca, de pé direito alto e um jardinzinho no meio da sala com uma abertura no telhado, pelo qual podíamos ver as estrelas.

O Serginho é formado em agroecologia pela ESALQ e, enquanto nos servia os queijos, manteiga e doce de leite produzidos na sua propriedade, contava pra gente sobre seu desejo de ter uma casa feita com bioconstrução. A casa dele é de alvenaria, apesar desses detalhes característicos das construções sustentáveis.
Quando perguntamos por que sua casa foi feita daquela forma, ele nos disse que quando os assentados recebem o crédito pra levantar suas moradias, são obrigados a comprar o material de construção de uma empresa específica, determinada pelo estado.

Falou também que a agroecologia tem sido considerada uma estratégia eficiente pra diminuir o investimento do pequeno produtor, que nem sempre consegue uma estabilidade de entrada de renda no período de carência que o Estado oferece, até ele ter que começar  a devolver o dinheiro. Muitas vezes eles acabam se endividando.

Conversamos bastante enquanto recebíamos, entre um assunto e outro, os infinitos e apaixonantes sorrisos do pequeno Francisco, três meses vivendo nesse mundão.

No finzinho da noite sentamos embaixo do Falmboyan que fica no meio do quintal e que virou nosso segundo ponto de encontro - fora a mesa da cozinha, claro! - durante o tempo em que estivemos ali. O céu silencioso acomodava uma quantidade de estrelas inenarrável.

Dormimos e na outra manhã a sombra do Flamboyant acolheu nossas discussões sobre a oficina que daríamos no dia seguinte pra um grupo de jovens assentados do MST e jovens do Levante Popular da Juventude. Foi desafiador elaborar uma oficina em seis cabeças que, mesmo pesquisando a mesma linguagem, têm experiências diferentes dentro dos espaços de aula.
Optamos por trabalhar a linguagem do mimodrama - que aprendemos quando estudamos a pedagogia do Jacques Lecoq - porque acreditamos que ela seria uma ferramenta de rápida apreensão por eles e efetiva pras criações de luta.

Finalizamos nosso papo e pegamos estrada pra conhecer a casa do Ricardo: toda bioconstruida, na beira do Rio Paraná. Visto de longe, ele parecia o mar.

A casa era um criativo quebra cabeças: Adobe, janela de ônibus na área de serviço, porteiras reaproveitadas, portas que também serviam de janelas se mudassem de posição… TUDO era reaproveitado. Ele insistiu, enfrentou o sistema e conseguiu levantar sua casa assim.

Fizemos um almoço em coletivo, comemos na mesinha do lado de fora enquanto o Ricardo contava um pouco da sua história. Ele é professor de Geografia em escolas do campo, coordenador do Assentamento Padre Josino, militante há anos e levou sua filha Vitória pra marcha do MST quando ela tinha 11 anos.  Andaram juntos por 16 dias.

Ouvimos diversas histórias sobre como essa gente foi se organizando pra ter um espaço pra viver e pra plantar, produzir. Sobre a luta contra os latifundiários, suas formas de fazer dinheiro e seu desejo de posse.

Fomos tomar banho de rio. Água fresca, sol se pondo. Um dia de descanso no meio dessa intensidade louca.

Estar no campo me coloca outra vez em contato com minha infância. Pé ante pé, poros abertos, vou me me relacionando com os cheiros, os sabores (ah, o suco de limão rosa!), as texturas, os bichos com os quais me relacionei quando era menina. O tempo é outro. E me dá tempo de pensar, principalmente vendo esse povo da luta, no que estamos comendo, em como estamos vivendo, em como o agronegócio tem tantas estratégias pra nos convencer de muitas mentiras.
Não é verdade que gera emprego. Como eu disse, as máquinas estão trabalhando por nós. Não é verdade que alimenta bem. Estamos comendo veneno, adoecendo e deixando os solos mais improdutivos.

Estar aqui me faz ver de perto a simplicidade e a complexidade da vida no campo. Me faz compreender a luta de outra forma, na pele, nos sentidos, nos olhares. A luta é braba, e, de fato, como diz um dos gritos de ordem “pra valer!” . Mas a força dessa galera…

Saboreio um queijo fresco enquanto escrevo esse relato.

Por Tejas, palhaça Carmen Serafina.

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